Noite Passada em Soho e o terrível ego masculino:
[Cinema]
como homens escondem suas vontades e dominância por trás de histórias de mulheres
Noite Passada em Soho é um filme de terror/suspense lançado em 2021, escrito e dirigido por Edgar Wright. O longa conta a história de Eloise, uma jovem com poderes mediúnicos, que sai de sua pequena cidade no interior para estudar moda em Londres. Ao chegar, já nota várias dificuldades de se encaixar, e encontra conforto em seu amor pelos anos 60, que a leva a alugar um quarto na casa de uma senhora. A partir do momento em que se muda, Eloise começa a sonhar com uma jovem que teria vivido no mesmo quarto nos anos 60, Sandy, e começa a adotar cada vez a aparência dessa jovem, romantizando sua vida de aspirante a cantora. Eloise, no entanto, se desencanta quando descobre que a vida de Sandy não foi tão boa, e que na verdade ela foi prostituída e enganada, e começa a ser assombrada pelos fantasmas dessa história. Quando ela acha que Sandy foi assassinada e começa a investigar a veracidade do que estava sonhando, descobre que a senhora proprietária é Sandy, que foi ela quem matou os homens que assombram Eloise. Após um conflito, Sandy aceita seu destino e se suicida, enquanto Eloise consegue sobreviver e se recupera.
O filme muito claramente coloca mulheres como suas protagonistas e os homens, com exceção do interesse romântico de Eloise -- o único garoto negro do filme –, como os antagonistas, e traz em primeiro plano questões em relação a assédio, feminicídio, e a realidade das mulheres tanto nos anos 60 quanto atualmente. Todas essas características fazem parecer que o filme adota um certo progressismo e busca apelar para o público feminino com a discussão de temas que muitas vezes não são de interesse dos homens. Entretanto, se analisado sob a perspectiva das Teorias Feministas do Cinema, é possível notar que o filme não apenas reproduz diversos estereótipos machistas, como também usa arquétipos e narrativas de maior visibilidade feminina para deixar o ego dos homens que o produziram e assistiram e as suas necessidades narcisistas e supremacistas em um lugar muito confortável.
A análise da construção das personagens Eloise e Sandy é um dos meios que mais evidenciam o ego masculino por trás da criação fílmica. Arquétipos comuns dos filmes de terror se tornam presente em ambas: Eloise como a final girl e Sandy como uma protagonista good for her (“bom para ela”).
Final girl é um termo que surge para definir as últimas garotas vivas nos filmes de slasher a partir do final dos anos 70, com a personagem Laurie de Halloween (John Carpenter, 1978). Essas personagens têm características em comum, que em sua maioria apelam para o público masculino. Isso se dá porque, ao se tornar sua própria salvadora e quem mata o monstro no final, a final girl é masculinizada, uma vez que essas são características da representação masculina, e esse público também precisa se identificar com seu triunfo, ao mesmo tempo que a deseja (Clover). Características comuns de final girls nos filmes são: brancas, jovens, atraentes, possuem uma certa androginia (como nome ou roupas) e não participam de atividades sexuais ou amorais durante a história, em sua maioria, são as únicas mulheres que não aparecem transando, bebendo ou usando drogas (Weaver).
Eloise é a garota que sobrevive no final do filme após enfrentar Sandy, a serial killer , que a envenena e tenta matá-la à facadas. Por mais que o diretor e escritor tente incluir elementos que subvertem a característica masculinizada das final girls dando para sua personagem traços vistos facilmente como femininos – seu interesse por moda, suas roupas e nome –, ele não consegue se desprender totalmente da sua representação enquanto uma: Eloise é julgada por ser “puritana demais” pelas outras mulheres do filme, é constantemente colocada em situações onde sua ingenuidade e falta de interesse no hedonismo das garotas a tornam uma vítima e a única vez que chega perto de participar de um ato sexual, interrompe a interação sem tirar nenhuma peça de roupa. A representação da feminilidade de Eloise é agradável aos homens e confusa para as mulheres. Enquanto tem vontades e não aceita ficar em posições desconfortáveis, ela mostra isso de um jeito muito quieto, o que é possível notar durante as três cenas de assédio onde ela é a vítima e, de maneira pouco ou quase nada reativa, sai da situação através de uma fuga silenciosa.
Sandy, por outro lado, dentro de sua narrativa usa aspectos comuns ao que um grupo de teóricos do horror vêm chamando de good for her . Esse termo, embora ainda não seja tão usado em estudos quanto final girl , é uma descrição de um subgênero em ascensão e pode ser observado em análises de filmes como A Bruxa (Robert Eggers, 2015) e Midsommar (Ari Aster, 2019). Good for her define filmes de vingança com protagonistas mulheres que assumem o papel de vítima-vilã quando começam a buscar retaliação contra símbolos (personagens) que representam a opressão patriarcal, e terminam com sentimentos ambíguos e conflitantes a respeito da moralidade da protagonista. Esses filmes comumente seguem a seguinte fórmula:
(Feminilidade como arma + privilégio branco = protagonista vítima-vilã) + catalisador traumático + uma mudança no senso de moralidade e ira = narrativa vil de vingança contra um símbolo da opressão patriarcal + catarse agridoce e voyeurística + as vezes auto destruição. (Heimemberger, p.14, 2022)
Ao retratar um trauma feminino e suas consequências pela visão da vítima mulher e validar a ira feminina ( female rage ) e todo o espectro emocional feminino a respeito da realidade patriarcal, sem considerá-lo “histeria”, esse subgênero se torna catártico para mulheres e, na maioria dos casos, não consegue gerar o entendimento dos homens.
Sandy é uma mulher branca, atraente e jovem, assim como Eloise, mas que é muito confiante, decidida, reativa e pouco puritana (bebe, fuma e transa). Ao começar a ser prostituída por Jack, Sandy tem seu sonho de ser cantora destruído, e ela não aceita as ordens de seu cafetão logo de início. Após ser usada e assediada por diversos homens, Sandy tenta escapar, mas é impedida por Jack que a ataca com uma faca. Na luta por sua vida, Sandy mata Jack e passa a usar sua sedução para fazer isso com todos os homens que se aproveitaram dela, em uma retaliação contra o machismo que destruiu seu sonho de ser cantora e a sua vida. No final, ela é culpada pela narrativa e por si mesma e aceita sua morte, dessa maneira, cumprindo a fórmula proposta por Heimemberger. No entanto, não se pode dizer que Noite Passada em Soho se encaixa nesse subgênero uma vez que Sandy não é a protagonista.
Dentro das características propostas pelo good for her , está o privilégio da perspectiva da personagem sobre seu trauma. No longa, a experiência de Sandy é contada de maneira voyeurística, sendo assistida por Eloise. No entanto, sua retaliação é contada pelas suas próprias lentes quando é relevada para Eloise pelas palavras da própria Sandy. Esse momento, o da vingança, deveria gerar catarse e empatia e levar o espectador a se aliar com a vítima, impedindo a apatia após a violência (Heimemberger), mas quando ele acontece em Noite Passada em Soho , nenhum desses sentimentos é evocado, porque Sandy já foi colocada no papel de antagonista pela narrativa e pela cinematografia. A vingança é revelada durante o clímax, após o filme preparar o espectador para um conflito final, e, revelar as ações assassinas de Sandy nesse momento em uma reviravolta, a personagem sai de sua posição de aliada de Eloise, a protagonista, e passa a ser uma ameaça para ela, ou seja, a antagonista, a personagem com a qual os espectadores não devem se aliar. Até mesmo os fantasmas, que, antes da revelação de suas mortes, aterrorizavam Eloise por serem os homens que antagonizam Sandy, passam a ser vítimas, que a garota para de temer ao ouvir seus pedidos de ajuda após a revelação.
Ao roubar a catarse, o filme não deixa espaço para sentimentos ambíguos, ele apenas tira Sandy, a mulher que sofreu com o patriarcado e buscou vingança, de sua posição de vítima e coloca este holofote apenas sobre Eloise, a mulher que é feminina e reativa dentro das medidas agradáveis aos homens que a assistem. A não fetichização e a autodefinição dos filmes good for her os tornam grandes símbolos representativos para a comunidade feminina, e, ao contar a história de Sandy, Edgar Wright subverte esses aspectos para construir uma narrativa que desvia de seu caminho e vai de encontro aos desejos dos espectadores masculinos.
Além da construção das personagens, uma análise da construção de suas narrativas interconectadas e individuais denuncia o olhar masculino na sua criação, e dá exemplos claros da representação machista observada por diversas teóricas feministas do cinema. Um dos clichés observados por autoras, principalmente Stacey, é a formação do desejo ativo através da diferença e a criação de um “outro idealizado” em narrativas protagonizadas por mulheres. Stacey analisa como o impulso da narrativa é a vontade de se tornar o outro idealizado, uma mulher se tornar a outra, mas nunca realmente chegar nesta transformação, o que impede a identificação, tanto entre as personagens, quanto entre as espectadoras femininas. Em Noite Passada em Soho , toda a relação entre Sandy e Eloise é construída dessa maneira. Após viver e assistir as experiências de Sandy em um sonho, Eloise se sente inspirada, afinal Sandy é confiante e consegue o que quer, enquanto ela é insegura e ainda está dando seus primeiros passos no mundo da arte em Londres. Eloise deixa seu cabelo igual o de Sandy, compra roupas parecidas, passa a se comportar de maneira mais segura, mas ainda não se sente completa sem estar vivendo a vida da outra mulher durante o sono, e passa tanto tempo pensando e ansiando por Sandy que não aceita criar relacionamentos com outros personagens, como John, o garoto que está interessado romanticamente nela. Esse desejo ativo criado entre as personagens reflete o desejo ativo reservado para homens, tanto na tela quanto fora dela, e sempre tem como objeto uma mulher (Mulvey), a falha dos homens em construir relacionamentos entre mulheres em narrativas sem essa leitura de mundo narcisista e voyeurística denuncia seu egocentrismo, e sua falta de vontade em realmente representar mulheres.
Em seus estudos a respeito do olhar masculino no cinema a partir de um ponto de vista psicanalítico, Mulvey discute sobre o falocentrismo e a ansiedade da castração refletida nas narrativas de personagens mulheres. Por gerar essa ansiedade nos homens, não é permitido à elas triunfar enquanto si mesmas, é necessária uma punição ou uma salvação, que se dão geralmente por morte ou casamento. O destino descrito por Mulvey é forçado tanto sobre Sandy quanto Eloise, respectivamente. Após a revelação de Sandy, por mais que Eloise diga que a entende, a narrativa se encarrega de a culpar. Os fantasmas sofrendo e pedindo ajuda e a reação de Sandy ao vê-los, mostra a maldade de seu ato, e como ela mesma sabe que é culpada. Com isso estabelecido, o que resta para ela é a punição pelos seus atos, ou seja, a morte, que ela mesma provoca sobre si. Eloise, pelo outro lado, triunfa e sobrevive, e por isso deve ser submetida mais uma vez aos moldes masculinos. Nos últimos minutos do filme, ela se desfaz do cabelo e das roupas semelhantes aos de Sandy e volta à sua aparência do início do filme, quando era uma garota ingênua, além de estar acompanhada de John, seu interesse amoroso.
Após a análise de Noite Passada em Soho sob a ótica de Teorias Feministas do Cinema é possível perceber que, por mais que apresente muitos elementos que possam ser confundidos com progressismo a uma primeira vista, ele na verdade reforça estereótipos nocivos para mulheres. A mulher reativa e catártica é a vilã, enquanto a mulher quieta e agradável é a heroína. Ao fazer uso de recursos narrativos que se tornaram pontos de resistência feminina no cinema para perpetuar o narcisismo masculino, o filme se esconde e chega nas espectadoras femininas para passar uma mensagem clara: mulheres devem continuar se comportando e sendo “boas meninas”, que eventualmente seu sofrimento vai acabar e elas conseguirão ser felizes dentro do sistema patriarcal.
REFERÊNCIAS
HEIMBERGER, Tara. Female Rage, Revenge, and Catharsis: The" Good for Her" Genre Defined in Promising Young Woman (2020) . 2022.
CHERRY, Brigid SG. The female horror film audience: viewing pleasures and fan practices. 1999.
WEAVER, Angela D. et al. Embodying the moral code? Thirty years of Final Girls in slasher films. Psychology of Popular Media Culture, v. 4, n. 1, p. 31, 2015.
STACEY, Jackie. Desperately seeking difference. 1988.
RIESER, Klaus. Masculinity and monstrosity: Characterization and identification in the slasher film. Men and Masculinities, v. 3, n. 4, p. 370-392, 2001.
SMELIK, Anneke M. Feminist film theory. 2007